🇧🇷 Resenha - Duologia Willian Hope Hodgson

Rebeca Sarai · January 15, 2021

  1. A casa no fim de tudo
    1. Personagens
    2. Narrativa Cíclica
  2. Os botes do Glen Carrig



Conheci a obra de William Hope Hodgson graças a edição número #8 do Clube Escotilha1. O livro enviado em Setembro de 2020 é uma duologia com duas das obras do autor: A casa no fim de tudo e Os botes do Glen Carrig (The House on the Borderland e The Boats of the “Glen Carrig”).

Hodgson nasceu na Inglaterra, no final do século XIX e morreu em batalha durante a Primeira Guerra Mundial. Ele é considerado um dos grandes nomes na ficção especulativa e serviu de inspiração para grandes mestres do gênero como H. P. Lovecraft. Além de escritor, Hodgson também foi fisiculturista, marinheiro e fotógrafo, um homem de muitos interesses (que ocasionalmente fazem aparições em suas obras).

Um ponto a se considerar durante a leitura é o contexto histórico. O horror como gênero literário goza de reputação bastante diferente da que gozava no início do século XX. Escrever histórias de horror cósmico, ou até mesmo horror, naquele período significava desbravar território inexplorado. Poucos autores haviam se aventurado no campo do medo e esse avanço se dava lentamente, inicialmente com romances góticos, depois com literatura espectral retratando fantasmas, demônios e figuras mitológicas. Hodgson foi um dos primeiros a criar novos seres que desafiavam as leis da natureza pertencendo a uma realidade paralela além do conhecimento comum. Com sua criatividade e pioneirismo, Hodgson criou uma nova dimensão do horror, servindo de inspiração para muitos que vieram depois. Ao leitor moderno, basta ter em mente que em suas mãos está um dos primeiros espécimes de horror cósmico.

A respeito dos livros em si, um leitor acertadamente usou as seguintes palavras para descrever a obra de Hodgson: “…os elementos bons são muito bons e os ruins são horríveis”2. Hodgson consegue retratar os elementos fantásticos e horríveis de forma primorosa, durante a leitura de partes mais inspiradas o cenário se torna palpável, é possível sentir o ambiente sombrio, a tensão que paira no ar, o perigo iminente vindo do desconhecido. Por outro lado, os acontecimentos se dão em ritmo lento, às vezes em fluxo circular (ambas as histórias possuem esse elemento), cobertos de ambientações longas e detalhadas sobre assuntos não relacionados à trama. Paralelamente, os personagens parecem meros espectadores, completamente desinteressantes.

A casa no fim de tudo

As histórias nessa duologia possuem níveis bem similares, no entanto A casa no fim de tudo tem o enredo mais atraente, o horror cósmico faz uma de suas primeiras aparições com elementos bem construídos. Hodgson mostra criatividade e desenvoltura ao retratar criaturas de outro mundo e experiências extracorpóreas, utilizando conhecimentos avançados de astronomia. Por outro lado, essa obra possui dois defeitos que tornam a leitura arrastada e cansativa: a falta de profundidade nos personagens e a narrativa cíclica.

Personagens

No início da história um manuscrito é encontrado por dois viajantes em uma casa abandonada. O manuscrito conta a história de um homem que tem experiências extracorpóreas onde várias coisas diferentes, surpreendentes, confusas e até sinistras acontecem. Em uma delas ele conhece uma mulher, é arrebatado por uma paixão irresistível e é, magicamente, correspondido por aquele ser mágico e angelical. Esse relacionamento misterioso é descrito por apenas um parágrafo onde Hodgson não desenvolve o ocorrido utilizando-se do recurso de dizer que as páginas originais do manuscrito (as páginas que o narrador da história lê) estavam ilegíveis. Me pergunto se esse é um daqueles momentos em que o autor quer falar mais ao se calar. Seria essa uma forma de dizer que os personagens, suas preocupações e conquistas possuem nenhuma importância diante do sobrenatural? De toda forma, essa ruptura cria um véu entre os personagens e o leitor.

Outro ponto que mostra essa desconexão entre autor e personagens é que o narrador quando não está viajando pelo espaço vive em uma casa com sua irmã e um cachorro. Durante os primeiros acontecimentos sobrenaturais, o narrador tenta combater seres estranhos que surgiram da terra, enquanto sua irmã parece alheia à presença deles (ele a tem como frágil, alienada e desconectada da realidade), a única coisa que parece assustá-la parece ser o próprio irmão. O narrador se vê forçado a prender a irmã em um cômodo até que ela se recupere de um suposto colapso nervoso. O ponto chave é que em um momento ele começa a desconfiar de que algo sobrenatural esteja por trás do medo da irmã, mas a história se desenvolve e esse ponto se perde. Ora, o medo da irmã era direcionado a ele? Ela estava louca? Ele estava louco? Não sabemos.

Imagino que o autor poderia rebater meus comentários afirmando que o ponto principal da história é a existência de multiversos independentes mas que quando alinhados causam acontecimentos inesperados e os personagens pouco importam. Me afasto desse argumento porque personagens complexos e consistentes transformam uma história fraca em uma leitura memorável, já uma história intrincada e complexa não produz o mesmo resultado. Um exemplo prático são as histórias de Arthur Conan Doyle sobre crimes, de quantos mistérios e suas resoluções você vividamente lembra? Aposto que não mais que dois. E sobre Sherlock, e Watson, alguma lembrança interessante? Aposto que sim. Sendo assim, considero que a falta de desenvolvimento dos personagens nessa obra é uma lástima, porque no geral gostei da história.

Narrativa Cíclica

Durante a segunda parte do livro o personagem embarca contra a sua vontade em mais uma experiência extracorpórea de onde ele observa o envelhecimento do mundo, seu fim e sua posterior criação. Um fluxo circular guia essa parte da narrativa, onde as mesmas coisas acontecem repetidas vezes com algumas variações e intervenções do personagem. Alguns acontecimentos voltam a acontecer de forma levemente modificada à medida que o tempo passa e o mundo se destrói diante dos olhos do personagem. Esse experimento narrativo me pareceu extremamente apropriado e me pergunto se isso foi de fato um experimento. A terra, o universo e até o homem são feitos de repetição porque não usar esse detalhe na escrita? Hodgson tenta terminar essa história olhando para o universo de um ponto de vista amplo, complexo e ousado, já que nos dias de hoje apesar dos avanços tecnológicos não temos as respostas para todas as questões relacionadas ao universo. O que no início se apresenta como uma experiência nova e revigorante se transforma em um exercício de resistência, causado por uma longa e circular descrição do que seria o envelhecimento do mundo que se estende pelo último terço do livro.

Por fim, Hodgson foi bem sucedido em montar uma história de horror cósmico, demonstrando diferentes recursos narrativos e conhecimentos avançados de astronomia. Alguns elementos experimentais dificultam a leitura, mesmo que sob uma análise crua esses elementos sejam interessantes e pareçam combinar com a obra.

Os botes do Glen Carrig

Esse foi o primeiro romance publicado por Hodgson em 1907 e relata a história, na forma de manuscrito, de John Winterstraw ao seu filho, no ano de 1757. O enredo dessa história me agradou menos, ainda que seja uma história memorável e de leitura mais fácil que a anterior.

O barco de Glen Carrig naufraga e seus tripulantes são forçados a usar os botes salva-vidas para retornar ao continente. Depois de passar dias em uma tempestade, eles se veem com poucas provisões e ansiosos por encontrar terra. Além dos perigos do mar, os tripulantes desse bote têm que enfrentar os perigos dos lugares que encontram.

Para seu primeiro livro publicado, Hodgson já mostra aqui alguns elementos que o fariam ser reconhecido pelos seus sucessores. Ilhas desertas com seres místicos, atmosferas carregadas, criaturas marítimas tentaculares vindas das profundezas e a pior de todas as criaturas: homens bípedes, magros e pálidos, que atacam outros homens quando cai a noite. Os elementos de horror nessa obra são igualmente cativantes, mas a história perde ritmo quando os homens se veem presos em uma ilha cheia de criaturas noturnas, com um barco precisando de reparos. As criaturas hostis fogem do fogo, então durante o dia os homens se dedicam a tarefas de subsistência o que se estende por boa parte do livro. O que pode ser interessante ao leitor, conhecer a rotina de náufragos em sua jornada de sobrevivência. A narrativa desanda de vez quando eles encontram um outro navio, preso entre corais cercado por perigos invisíveis, resultando em longas descrições sobre a manufatura de uma corda, o conserto do barco e a procura por mantimentos. E qual a necessidade de levar o leitor durante todas essas atividades? Elementar, eles precisavam da corda, precisavam consertar o barco e precisavam dos mantimentos, nada acontece durante esses períodos de trabalho, nenhum acontecimento desenvolve a trama ou os personagens.

Os mesmos comentários anteriores podem ser feitos aqui em relação aos personagens e a natureza cíclica da história. A única relação presente na história é a relação entre o Winterstraw e o contramestre que é aparentemente próxima e ainda assim distante, os outros membros da tripulação tem aspectos vagos e imagino que comuns à marinheiros. O sobrenatural se materializa na frente deles e ainda assim não existe qualquer tipo de suposição coletiva a respeito do que sejam aquelas coisas. O aspecto cíclico se apresenta no modo em que todos os dias pareciam iguais, tanto para os marinheiros, tanto para o leitor em momentos distintos da história, o que dá a impressão de passagem do tempo, mas também torna a leitura cansativa.

Uma coisa me chamou a atenção no final do livro, o narrador e o contramestre conversam timidamente sobre o novo relacionamento de Winterstraw com uma jovem do navio resgatado. Logo após o retorno da tripulação ao continente, o contramestre vai viver com o narrador, juntamente com a mesma jovem que se torna sua esposa, isso era comum? Vejo aqui um indício de um relacionamento além da amizade entre os dois? Ou minha mente do século XXI está afiada demais?

Os botes do Glen Carrig me pareceu uma história com um ritmo melhor, mas cheia de ambientação e detalhes um tanto desinteressantes. O enredo de A casa no fim de tudo me agradou mais, apesar do último terço ser extremamente maçante.

Footnotes

1. https://www.escotilhans.com.br/clube-escotilha-8

2. https://www.goodreads.com/review/show/39883579?book_show_action=true&from_review_page=1


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